sexta-feira, 6 de março de 2020

BILHETES DA ESCOLA – “Pais, Tomem providências!” - série Telma Vinha - Sandra Tedeschi


Esta série de textos são reflexões da autora Sandra Cristina De Carvalho Dedeschi com a orientação da Dra Telma Pileggi Vinha e dizem respeito a resolução de diversos conflitos escolares, usando pesquisas realizadas pela equipe de educadores da UNICAMP. O texto completo está em “Bilhetes reais e/ou virtuais: uma análise construtivista da comunicação entre escola e família”.

Senhora mãe
Por favor converse com sua filha, ela não fica sentada, anda pela sala e conversa o tempo todo.
Eu peço para ela sentar ou parar de conversar e ela não quer nem saber.
Não está prestando atenção e não consegue fazer sozinha algumas atividades.
Desde já, professora.”





Foram coletados 1177 bilhetes, sendo analisados 895 e realizadas 70 entrevistas com sujeitos envolvidos no processo de comunicação. A análise do conteúdo foi realizada utilizando-se a triangulação de métodos.

Analisamos 895 bilhetes reais e virtuais em ambos os níveis do Ensino Fundamental de escola pública e particular. Dos inúmeros resultados encontrados, selecionamos alguns que consideramos mais expressivos.
Um dos que merece atenção é o predomínio de mensagens em que os conteúdos abordavam “regras convencionais” ou “conflitos”, em detrimento daqueles que visavam informar sobre “aprendizagem”.

É notória a preocupação da escola com que os alunos obedeçam às regras impostas e que as situações conflituosas sejam evitadas, demonstrando que os mecanismos empregados pelos educadores são resultantes de uma concepção tradicional que compreende os conflitos como algo negativo.



Diferentemente dessa realidade, a perspectiva adotada neste estudo vê esses problemas que ocorrem naturalmente no espaço escolar como oportunidades de aprendizagem dos alunos.

Para que ocorra o desenvolvimento é necessário que os envolvidos pensem a respeito de suas atitudes, reconheçam seus próprios sentimentos e os dos demais sujeitos, troquem pontos de vista a respeito dos fatos procurando coordenar e respeitar as ideias de todos, busquem encontrar soluções justas e equilibradas para resolver os conflitos.



Por outro lado, na escola tradicional, as regras precisam ser impostas por não serem legitimadas pelos estudantes uma vez que desconhecem seus princípios e sua real necessidade. Constatou-se também que a preocupação da escola centra-se mais fortemente nesse tipo de regras, dando menor relevância às morais.

Não raro os estudantes, assim como alguns professores, desconhecem as extensas listas de regras e proibições da escola, sendo constantemente cobrados por meio de mecanismos de coação, como censuras e advertências, para que obedeçam.






Bilhetes de responsabilização
Em síntese, ao observarmos a “responsabilização”, constatou-se que 100% dos bilhetes abordavam assuntos de responsabilidade da escola, enquanto que em 35,3% também pertenciam aos pais. Parece-nos ficar claro que os professores, muitas vezes, informavam as famílias sobre problemas cuja solução, na verdade, fazia parte de seu próprio papel.

Na concepção em que esta pesquisa se baseia, consideramos que o primeiro passo no trabalho com as atividades para casa deve ser realizado na escola, com o próprio estudante. Quando ele deixa de fazer a lição uma ou duas vezes, o educador precisa discutir com ele qual a importância de fazer as propostas enviadas e combinar uma nova data para a entrega daquelas que estão atrasadas.

Todavia, mais importante do que garantir que cumpra com a tarefa, é preciso que o educador investigue o que está acontecendo com esse aluno e as possíveis causas para não realizar as propostas para casa. Há alunos que quando voltam da escola são responsáveis por cuidar de seus irmãos enquanto a mãe trabalha, outros, ainda, ajudam no trabalho do pai, dificultando que façam os deveres escolares. A partir das causas é que as soluções possíveis devem ser pensadas e discutidas com o sujeito, como, por exemplo, combinar um período maior para que essas atividades sejam realizadas ou que possam ser entregues em partes.

Somente dessa maneira o estudante terá a oportunidade de se autorregular. Caso o acordo feito não seja cumprido, será importante contatar a família, não para lhe transferir a responsabilidade, mas para estabelecer uma parceria em que cada um dos envolvidos atue para resolver o problema. Assim, enquanto a escola cuida da aprendizagem, a família pode se envolver constantemente com a vida escolar de seus filhos e a estes cabe a disposição para fazer sua parte.




Seria bem mais simples se a solução dos problemas dos quais se queixam os professores dependesse somente dos pais estarem mais presentes na vida escolar de seus alunos, como acreditam. Tal crença acaba por promover uma ideia errônea a respeito da possível parceria com as famílias. Os profissionais esperam que os responsáveis acompanhem o desempenho do estudante em casa, principalmente garantindo que façam suas tarefas adequadamente e que as famílias sejam estruturadas de acordo com um modelo considerado favorável. Sendo a parceria compreendida como uma reunião de pessoas com um interesse em comum, como discutido no quadro teórico da presente pesquisa, não pode basear-se na terceirização das responsabilidades que cabem a cada instituição.

Assim como a intenção não era de julgar as intervenções dos pais, também não se pretende culpar a escola por possíveis incoerências entre seu discurso a respeito da relevância de uma parceria com a família e as ações utilizadas no seu cotidiano. O foco desta reflexão está no fato de que, na prática, os educadores de um modo geral também parecem seguir no sentido oposto aos objetivos a que se propõem, gerando a necessidade de buscar compreender o que faz parte de seu papel e dos responsáveis. Só depois de ter consciência do que cabe a cada instituição deverá reavaliar a finalidade da parceria com os pais de seus alunos bem como as estratégias utilizadas para manter uma relação coerente e eficaz.

Outra questão a ser considerada é que não há um único tipo de família, baseado no modelo nuclear burguês. Acredita-se também que muitas dessas dificuldades vivenciadas pelos professores se encontram no fato de que pautam suas ações nessa estrutura familiar como se fosse única, desconsiderando as mudanças da contemporaneidade.

Dessa forma, concordamos com a importância do reconhecimento e da legitimação do papel da cada uma dessas instituições educativas, no entanto, como discutido em outros momentos, é indispensável considerar também a função do aluno, principal sujeito beneficiado com o aprimoramento e o sucesso da relação.




RESUMINDO

Em síntese, os dados referentes às entrevistas apontaram que…

- ao tomarem medidas quando recebem uma comunicação, os pais demonstram legitimar as informações enviadas pelos professores como se fossem a realidade absoluta).

- bilhetes resultam em desavenças no meio familiar, como discussões, censuras, ameaças e no uso de sanções expiatórias como castigos e agressão física.


- o uso de agressão física predominou no nível I da escola pública, onde foram identificadas punições consideradas humilhantes, exageradas e abusivas.

- as conversas, às vezes, se transformam em sermões nos quais só o adulto fala, cabendo ao aluno um papel passivo.

- em ambas as instituições predominaram os castigos em que os pais retiravam algo que os filhos gostassem.


- em nenhum momento foi identificado o uso de diálogos construtivos como intervenção.

- entre os sentimentos dos alunos, quando recebem um bilhete, predominaram o medo e a tristeza.

- a maioria dos estudantes afirmava mudar de postura depois das intervenções, mas nem metade dos pais concordava que houve uma mudança.

- crianças modificavam sua postura por medo de receber um novo bilhete ou outra punição ao chegarem em casa.



- alunos, pais e professores reconhecem a reincidência dos comportamentos após as intervenções.

- professores acreditavam que alguns pais não faziam nada para auxiliar o trabalho na escola, porém diverge do encontrado.

- pais demonstravam legitimar as informações enviadas pela escola, o que não era percebido pelos professores, uma vez que continuavam as queixas a respeito da “desestrutura” familiar.

- o uso dos bilhetes era intencional, pois professores esperavam que os pais resolvessem os problemas informados de acordo com os recursos educativos que dispunham.



- a escola pode ser considerada como corresponsável pelas implicações dos bilhetes nas relações familiares.

Verificou-se, assim, uma realidade bem distante do oferecimento de um ambiente sócio moral cooperativo em que esses conflitos devem ser discutidos com o próprio sujeito e as regras elaboradas pelo próprio grupo a partir da necessidade que surge das vivências diárias.

Um segundo resultado que merece ser mais discutido é o fato de que prevalece o envio de mensagens para comunicar conflitos ocorridos “com a autoridade”.

A preocupação com a ordem e a obediência parece ser um dos motivos pelos quais há um considerável número de bilhetes informando “conflitos com a autoridade”. Como vimos, conforme ficam maiores há o aumento da cobrança por posturas esperadas pelos educadores, como prestar atenção na aula, evitar conversas paralelas, realizar prontamente as atividades e as tarefas propostas, obedecer às regras impostas, entre tantos outros comportamentos vistos pelos professores como necessários para o bom aproveitamento acadêmico.

Vale ressaltar que parece não haver preocupação semelhante com os conflitos entre os pares (conflito aluno com aluno). . .





Um terceiro ponto que destacamos diz respeito aos aspectos identificados na estrutura
dos bilhetes redigidos pelos educadores do Ensino Fundamental I.

Destacou-se que cada instituição precisa assumir suas responsabilidades, evitando a terceirização dos problemas de uma para a outra. Escola e família precisam tomar ciência de que possuem papéis e funções diferenciadas no processo educativo. Dessa forma, acredita-se que nem tudo precisa ser informado aos pais, e quando for realmente necessário compartilhar uma informação, que se tenha cautela. Muitas vezes, no auge do conflito, o professor pode escrever na agenda ou no caderno do aluno por impulso, perdendo a oportunidade de realizar uma intervenção mais construtiva.


Bilhetes respeitosos
No entanto, após a realização de um trabalho propício com o estudante, o educador deve refletir a respeito da real necessidade e o objetivo de determinado fato ser informado à família do aluno. Há a urgência de ser ponderado quando uma comunicação é realmente indispensável e como deve ser realizada. Ao ser constatado que é preciso informar algo aos pais, torna-se apropriado também comunicar as providências tomadas e os possíveis acordos feitos, esclarecendo a intenção de realmente informar a respeito do trabalho realizado pela escola. 

Ao enviar um bilhete compreende-se a importância de o professor pensar sobre o assunto e de que maneira as mensagens serão redigidas. Acredita-se que seus textos devam ser escritos usando-se uma linguagem respeitosa, objetiva e clara. Sendo assim, alertamos sobre a relevância de a estrutura apresentada nas mensagens remetidas aos pais serem alvo de reflexão por parte do professor e demais integrantes da equipe pedagógica.


Foi positivo para o aprendizado do aluno?
Verificamos ainda que a comunicação realizada pela escola não favorece que o estudante desenvolva a consciência necessária para a mudança de postura por meio da autorregulação.

O aluno, principal interessado nos conflitos (ou quem, pelo menos, deveria), na maior parte das vezes é excluído do processo de resolução geralmente adotado pelas escolas. 
A situação pode ser resumida da seguinte maneira: o problema ocorre, o professor registra e informa aos pais que devem auxiliar para que não voltem a acontecer. O que nos parece é que, quando alguma providência é tomada na escola, antecedendo o bilhete, limita-se a ações como a utilização de “conversas” que se resumem principalmente em censuras e sermões e ao uso de castigos e ameaças visando fazer com que o aluno obedeça.


Os pais repetem em casa o que não funcionou na escola

Chamou a atenção também o fato de que as informações frequentemente são legitimadas pelos familiares gerando implicações desfavoráveis na relação pais e filhos.

Conscientes de que os professores esperam que algo seja feito em casa, buscam resolver os conflitos informados por meio dos recursos de que dispõem, como as “conversas” (sermões e censuras) ou a aplicação de castigos (retirada de algo de que gostem ou punições físicas). No entanto, com o uso dessas sanções expiatórias, o filho é punido, “paga seu débito”, sentindo-se “livre” para cometer novos delitos. A utilização desses procedimentos gera uma mudança de comportamento por motivação extrínseca, que acarreta em uma modificação apenas temporária.

Pode-se dizer, contudo, que o modo de a escola lidar com os problemas envolvendo os alunos acaba por culpabilizar os pais e por afastá-los ainda mais do espaço escolar.

Recebendo constantemente queixas sobre o comportamento dos filhos, acredita-se que os pais sentem-se culpados por “falharem” na tarefa de educar e ainda por cima, precisam “aguentar o peso” das cobranças feitas pela escola. Constatou-se que muitos dos responsáveis por aqueles alunos considerados indisciplinados, por não saberem mais como lidar com os problemas de que são “informados”, acabam por se afastar ainda mais da escola.


Acredita-se ainda que um dos fatores que interferem é que há incoerência entre o modelo de família idealizado pela escola e as diversas configurações familiares da sociedade pós-moderna.

Diante das colocações anteriores, pareceu-nos que a escola pode ser considerada corresponsável pelas implicações decorrentes do envio dos bilhetes e seu impacto nas famílias.

Alguns professores que participaram do estudo reconhecem que os responsáveis recorrem a sanções expiatórias, como os castigos físicos, censuras ou outras punições. Entretanto, mesmo assim, enviam os bilhetes de forma intencional realmente esperando que os pais tomem atitudes disciplinares para auxiliar o controle e a obediência dos alunos quando retornarem ao espaço escolar. Assim, pode-se inferir que, se a escola manda bilhetes para casa mesmo sabendo que os pais usam de procedimentos coercitivos, há corresponsabilidade nas implicações domésticas causadas pelas mensagens que envia.

Tal ideia pode ser percebida pelo fato de que raramente são comunicadas atitudes positivas e constatou-se inúmeras situações em que o professor não chega a escrever o bilhete, mas ameaça fazê-lo como chantagem para que o aluno lhe obedeça.





PARCERIA FAMÍLIA - ESCOLA OU BUSCA POR CULPADOS?

Uma questão fundamental presente na interação entre essas duas instituições educativas é que a escola, de um modo geral, compreende parceria de forma errônea. Pode-se verificar que delega aos pais tarefas de sua responsabilidade agindo de forma reducionista e até equivocada. Em vez de terceirizar os conflitos para as famílias ou culpá-las pela ocorrência das desavenças, os educadores deveriam estar aptos para resolver os problemas que ocorrem nos espaços escolares sem transferir para a outra instituição o que é pertinente às suas funções.

Vale destacar, ainda, que as dificuldades que uma encontra ao realizar seu papel, não podem comprometer o desempenho das funções que cabem à outra instituição.
Para tanto, faz-se necessário ter clareza de que à família é atribuída a educação no âmbito privado, sendo particular à escola favorecer as relações mantidas no espaço público. Parece-nos que a transformação do espaço escolar não depende da família e vice versa. É indispensável que a escola se conscientize de suas funções buscando refletir frequentemente sobre seus objetivos sem despender de tempo e energia buscando por “culpados” pelas dificuldades encontradas em seu cotidiano apenas extramuros.



Posteriormente, faz-se necessário que a escola reflita: O que tem feito para orientar os
familiares a lidarem com os conflitos que informam por meio dos bilhetes ou nas reuniões?

Não estamos propondo que os pais não sejam avisados, muito menos que ao receber as
informações de seus filhos devem fazer tudo o que a escola solicitar. Considerando que “muitas vezes a cooperação quer dizer discussão e não acordo” (MENIN, 1996, p. 52), para que se possa estabelecer uma parceria pautada na cooperação, é preciso que essas duas instituições educativas dialoguem a respeito de seu interesse comum: a educação de nossas crianças e adolescentes.

Dessa forma, acreditamos ser possível que a escola se torne um ambiente mais acolhedor favorecendo relações mais amistosas e respeitosas, ao invés de promover a ideia de que pais e professores são adversários no processo educativo.


Todavia, ao término deste estudo surgem outras indagações…

Poderíamos supor que ao transferir os problemas para as famílias resolverem, a escola se exime de rever como trabalha com as regras e com os conflitos que surgem naturalmente em seu espaço?

As estratégias que os professores fazem uso, como os castigos, as ameaças de enviar
bilhetes, as censuras, não estariam contribuindo para o aumento dos mesmos problemas que tentam resolver?

É só a família que deve fazer ajustes?



Será que encontraríamos dados semelhantes em outras escolas da rede pública? E nas
particulares?

Como seria a comunicação com as famílias numa escola que ofereça um ambiente sócio moral cooperativo?Haveria diferença?

E as regras convencionais cobradas dos alunos? Como surgem? Quais os mecanismos de trabalho para sua legitimação no espaço escolar antes de ser informado aos familiares que não estão sendo cumpridas?





O que fazer então?




Veja o vídeo onde a Dra Telma Vinha explica isto pessoalmente:
MEDIANDO CONFLITOS NA ESCOLA - TELMA VINHA 



Referências

1 - CONSTRUINDO A AUTONOMIA MORAL NA ESCOLA: os conflitos interpessoais e a aprendizagem dos valores (VINHA, TOGNETA, 2009)

2 - BILHETES REAIS E/OU VIRTUAIS: uma análise construtivista da comunicação entre escola e família (SANDRA CRISTINA DE CARVALHO DEDESCHI, 2011)

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