Esta
série de textos são reflexões da autora Sandra Cristina De
Carvalho Dedeschi com a orientação da Dra Telma Pileggi Vinha e
dizem respeito a resolução de diversos conflitos escolares, usando
pesquisas realizadas pela equipe de educadores da UNICAMP. O texto
completo está
em “Bilhetes
reais e/ou virtuais: uma análise construtivista da comunicação
entre escola e família”.
“Senhora
mãe
Por
favor converse com sua filha, ela não fica sentada, anda pela sala e conversa
o tempo todo.
Eu
peço para ela sentar ou parar de conversar e ela não quer nem
saber.
Não
está prestando atenção e não consegue fazer sozinha algumas
atividades.
Desde
já, professora.”
Foram coletados 1177 bilhetes, sendo analisados 895 e realizadas 70 entrevistas com sujeitos envolvidos no processo de comunicação. A análise do conteúdo foi realizada utilizando-se a triangulação de métodos.
Analisamos
895 bilhetes reais e virtuais em ambos os níveis do Ensino
Fundamental de escola pública e particular. Dos inúmeros resultados
encontrados, selecionamos alguns que consideramos mais expressivos.
Um
dos que merece atenção é o predomínio de mensagens em que os
conteúdos abordavam
“regras convencionais” ou “conflitos”, em detrimento
daqueles que visavam informar sobre “aprendizagem”.
É
notória a preocupação da escola com que os alunos obedeçam
às regras impostas e que as situações conflituosas sejam
evitadas, demonstrando que os mecanismos empregados pelos
educadores são resultantes de uma concepção tradicional que
compreende os conflitos como algo negativo.
Para
que ocorra o desenvolvimento é necessário que os envolvidos
pensem a respeito de suas atitudes, reconheçam seus próprios
sentimentos e os dos demais sujeitos, troquem pontos de vista a
respeito dos fatos procurando coordenar e respeitar as ideias de
todos, busquem encontrar soluções justas e equilibradas para
resolver os conflitos.
Por outro lado, na escola tradicional, as
regras precisam ser impostas por não serem legitimadas pelos
estudantes uma vez que desconhecem seus princípios e sua real
necessidade. Constatou-se também que a preocupação da escola
centra-se mais fortemente nesse tipo de regras, dando menor
relevância às morais.
Não
raro os estudantes, assim como alguns professores, desconhecem as
extensas listas de regras e proibições da escola, sendo
constantemente cobrados por meio de mecanismos de coação, como
censuras e advertências, para que obedeçam.
Bilhetes
de responsabilização
Em
síntese, ao observarmos a “responsabilização”, constatou-se
que 100% dos bilhetes abordavam
assuntos de responsabilidade da escola, enquanto que em 35,3%
também pertenciam aos pais. Parece-nos ficar claro que os
professores, muitas vezes, informavam as famílias sobre problemas
cuja solução, na verdade, fazia parte de seu próprio papel.
Na
concepção em que esta pesquisa se baseia, consideramos que o
primeiro passo no trabalho com as atividades para casa deve
ser realizado na escola, com o próprio estudante. Quando ele
deixa de fazer a lição uma ou duas vezes, o educador precisa
discutir com ele qual a importância de fazer as propostas
enviadas e combinar uma nova data para a entrega daquelas que estão
atrasadas.
Todavia,
mais importante do que garantir que cumpra com a tarefa, é preciso
que o educador investigue o que está acontecendo com esse
aluno e as possíveis causas para não realizar as propostas para
casa. Há alunos que quando voltam da escola são responsáveis por
cuidar de seus irmãos enquanto a mãe trabalha, outros, ainda,
ajudam no trabalho do pai, dificultando que façam os deveres
escolares. A partir das causas é que as soluções possíveis devem
ser pensadas e discutidas com o sujeito, como, por exemplo, combinar
um período maior para que essas atividades sejam realizadas ou que
possam ser entregues em partes.
Somente
dessa maneira o estudante terá a oportunidade de se autorregular.
Caso o acordo feito não seja cumprido, será importante contatar
a família, não para lhe transferir a responsabilidade, mas para
estabelecer uma parceria em que cada um dos envolvidos atue
para resolver o problema. Assim, enquanto a escola cuida da
aprendizagem, a família pode se envolver constantemente com a vida
escolar de seus filhos e a estes cabe a disposição para fazer sua
parte.
Seria
bem mais simples se a solução dos problemas dos quais se queixam os
professores dependesse
somente dos pais estarem mais presentes na vida escolar de seus
alunos, como acreditam. Tal crença acaba por promover uma ideia
errônea a respeito da possível parceria com as famílias. Os
profissionais esperam que os responsáveis acompanhem o
desempenho do estudante em casa, principalmente garantindo que façam
suas tarefas adequadamente e que as famílias sejam estruturadas de
acordo com um modelo considerado favorável. Sendo a parceria
compreendida como uma reunião de pessoas com um interesse em comum,
como discutido no quadro teórico da presente pesquisa, não pode
basear-se na terceirização das responsabilidades que cabem a cada
instituição.
Assim
como a intenção não era de julgar as intervenções dos pais,
também não se pretende culpar a escola por possíveis
incoerências entre seu discurso a respeito da relevância de uma
parceria com a família e as ações utilizadas no seu cotidiano. O
foco desta reflexão está no fato de que, na prática, os educadores
de um modo geral também parecem seguir no sentido oposto aos
objetivos a que se propõem, gerando a necessidade de buscar
compreender o que faz parte de seu papel e dos responsáveis. Só
depois de ter consciência do que cabe a cada instituição
deverá reavaliar a finalidade da parceria com os pais de seus alunos
bem como as estratégias utilizadas para manter uma relação
coerente e eficaz.
Outra
questão a ser considerada é que não há um único tipo de
família, baseado no modelo nuclear burguês. Acredita-se também
que muitas dessas dificuldades vivenciadas pelos professores se
encontram no fato de que pautam suas ações nessa estrutura familiar
como se fosse única, desconsiderando as mudanças da
contemporaneidade.
Dessa
forma, concordamos com a importância do reconhecimento e da
legitimação do papel da cada uma dessas instituições
educativas, no entanto, como discutido em outros momentos, é
indispensável considerar também a função do aluno, principal
sujeito beneficiado com o aprimoramento e o sucesso da relação.
RESUMINDO
Em
síntese, os dados referentes às entrevistas apontaram que…
-
ao tomarem medidas quando recebem uma comunicação, os pais
demonstram legitimar as informações enviadas pelos professores como se fossem a realidade absoluta).
-
bilhetes resultam em desavenças no meio familiar, como
discussões, censuras, ameaças e no uso de sanções expiatórias
como castigos e agressão física.
-
o uso de agressão física predominou no nível I da escola pública,
onde foram identificadas punições consideradas humilhantes,
exageradas e abusivas.
-
as conversas, às vezes, se transformam em sermões nos quais só
o adulto fala, cabendo ao aluno um papel passivo.
-
em ambas as instituições predominaram os castigos em que os
pais retiravam algo que os filhos gostassem.
-
em nenhum momento foi identificado o uso de diálogos construtivos
como intervenção.
-
entre os sentimentos dos alunos, quando recebem um bilhete,
predominaram o medo e a tristeza.
-
a maioria dos estudantes afirmava mudar de postura depois das
intervenções, mas nem metade dos pais concordava que houve uma
mudança.
-
crianças modificavam sua postura por medo de receber um novo
bilhete ou outra punição ao chegarem em casa.
-
alunos, pais e professores reconhecem a reincidência dos
comportamentos após as intervenções.
-
professores acreditavam que alguns pais não faziam nada para
auxiliar o trabalho na escola, porém diverge do encontrado.
-
pais demonstravam legitimar as informações enviadas pela escola, o
que não era percebido pelos professores, uma vez que continuavam as
queixas a respeito da “desestrutura” familiar.
-
o uso dos bilhetes era intencional, pois professores esperavam que
os pais resolvessem os problemas informados de acordo com os
recursos educativos que dispunham.
-
a escola pode ser considerada como corresponsável pelas
implicações dos bilhetes nas relações familiares.
Verificou-se,
assim, uma realidade bem distante do oferecimento de um ambiente sócio
moral cooperativo em que esses conflitos devem ser discutidos
com o próprio sujeito e as regras elaboradas pelo próprio grupo a
partir da necessidade que surge das vivências diárias.
Um
segundo resultado que merece ser mais discutido é o fato de que
prevalece o envio de
mensagens para comunicar conflitos ocorridos “com a autoridade”.
A
preocupação com a ordem e a obediência parece ser um dos motivos
pelos quais há um considerável número de bilhetes informando
“conflitos com a autoridade”. Como vimos, conforme ficam maiores
há o aumento da cobrança por posturas esperadas pelos educadores,
como prestar atenção na aula, evitar conversas paralelas, realizar
prontamente as atividades e as tarefas propostas, obedecer às regras
impostas, entre tantos outros comportamentos vistos pelos professores
como necessários para o bom aproveitamento acadêmico.
Vale
ressaltar que parece não haver preocupação semelhante com os
conflitos entre os pares (conflito aluno com aluno). . .
Um
terceiro ponto que destacamos diz respeito aos aspectos
identificados na estrutura
dos
bilhetes redigidos pelos educadores do Ensino Fundamental I.
Destacou-se
que cada instituição precisa assumir suas responsabilidades,
evitando a terceirização
dos problemas de uma para a outra. Escola e família precisam tomar
ciência de que possuem papéis e funções diferenciadas no processo
educativo. Dessa forma, acredita-se que nem tudo precisa ser
informado aos pais, e quando for realmente necessário
compartilhar uma informação, que se tenha cautela. Muitas
vezes, no auge do conflito, o professor pode escrever na agenda ou no
caderno do aluno por impulso, perdendo a oportunidade de realizar uma
intervenção mais construtiva.
Bilhetes
respeitosos
No
entanto, após a realização de um trabalho propício com o
estudante, o educador deve refletir a respeito da real necessidade
e o objetivo de determinado fato ser informado à família do
aluno. Há a urgência de ser ponderado quando uma comunicação é
realmente indispensável e como deve ser realizada. Ao ser constatado
que é preciso informar algo aos pais, torna-se apropriado também
comunicar as providências tomadas e os possíveis acordos
feitos, esclarecendo a intenção de realmente informar a
respeito do trabalho realizado pela escola.
Ao enviar um bilhete
compreende-se a importância de o professor pensar sobre o assunto e
de que maneira as mensagens serão redigidas. Acredita-se que seus
textos devam ser escritos usando-se uma linguagem respeitosa,
objetiva e clara. Sendo assim, alertamos sobre a relevância de a
estrutura apresentada nas mensagens remetidas aos pais serem alvo de
reflexão por parte do professor e demais integrantes da equipe
pedagógica.
Foi
positivo para o aprendizado do aluno?
Verificamos
ainda que a comunicação realizada pela escola não favorece que o
estudante desenvolva a consciência necessária para a mudança
de postura por meio da autorregulação.
O
aluno, principal interessado nos conflitos (ou quem, pelo menos,
deveria), na maior parte
das vezes é excluído do processo de resolução geralmente
adotado pelas escolas.
A situação pode ser resumida da seguinte
maneira: o problema ocorre, o professor registra e informa aos pais
que devem auxiliar para que não voltem a acontecer. O que nos parece
é que, quando alguma providência é tomada na escola, antecedendo o
bilhete, limita-se a ações como a utilização de “conversas”
que se resumem principalmente em censuras e sermões e ao uso de
castigos e ameaças visando fazer com que o aluno obedeça.
Os
pais repetem em casa o que não funcionou na escola
Chamou
a atenção também o fato de que as informações frequentemente são
legitimadas pelos familiares gerando implicações desfavoráveis
na relação pais e filhos.
Conscientes
de que os professores esperam que algo seja feito em casa, buscam
resolver os conflitos informados por meio dos recursos de que
dispõem, como as “conversas” (sermões e censuras) ou a
aplicação de castigos (retirada de algo de que gostem ou
punições físicas). No entanto, com o uso dessas sanções
expiatórias, o filho é punido, “paga seu débito”, sentindo-se
“livre” para cometer novos delitos. A utilização desses
procedimentos gera uma mudança de comportamento por motivação
extrínseca, que acarreta em uma modificação apenas temporária.
Pode-se
dizer, contudo, que o modo de a escola lidar com os problemas
envolvendo os alunos acaba por culpabilizar os pais e por afastá-los
ainda mais do espaço escolar.
Recebendo
constantemente queixas sobre o comportamento dos filhos, acredita-se
que os pais sentem-se culpados por “falharem” na tarefa de
educar e ainda por cima, precisam “aguentar o peso” das
cobranças feitas pela escola. Constatou-se que muitos dos
responsáveis por aqueles alunos considerados indisciplinados, por
não saberem mais como lidar com os problemas de que são
“informados”, acabam por se afastar ainda mais da escola.
Acredita-se
ainda que um dos fatores que interferem é que há incoerência
entre o modelo
de família idealizado pela escola e as diversas configurações
familiares da sociedade pós-moderna.
Diante
das colocações anteriores, pareceu-nos que a escola pode ser
considerada corresponsável
pelas implicações decorrentes do envio dos bilhetes e seu impacto
nas famílias.
Alguns
professores que participaram do estudo reconhecem que os responsáveis
recorrem a sanções expiatórias, como os castigos físicos,
censuras ou outras punições. Entretanto, mesmo assim, enviam
os bilhetes de forma intencional realmente esperando que os pais
tomem atitudes disciplinares para auxiliar o controle e a obediência
dos alunos quando retornarem ao espaço escolar. Assim, pode-se
inferir que, se a escola manda bilhetes para casa mesmo sabendo que
os pais usam de procedimentos coercitivos, há corresponsabilidade
nas implicações domésticas causadas pelas mensagens que envia.
Tal
ideia pode ser percebida pelo fato de que raramente são
comunicadas atitudes positivas e constatou-se inúmeras situações
em que o professor não chega a escrever o bilhete,
mas ameaça fazê-lo como chantagem para que o aluno lhe obedeça.
PARCERIA
FAMÍLIA - ESCOLA OU BUSCA POR CULPADOS?
Uma
questão fundamental presente na interação entre essas duas
instituições educativas é que a escola, de um modo geral,
compreende parceria de forma errônea. Pode-se verificar que
delega aos pais tarefas de sua responsabilidade agindo de
forma reducionista e até equivocada. Em vez de terceirizar os
conflitos para as famílias ou culpá-las pela ocorrência das
desavenças, os educadores deveriam estar aptos para resolver
os problemas que ocorrem nos espaços escolares sem transferir
para a outra instituição o que é pertinente às suas funções.
Vale
destacar, ainda, que as dificuldades que uma encontra ao realizar seu
papel, não podem
comprometer o desempenho das funções que cabem à outra
instituição.
Para
tanto, faz-se necessário ter clareza de que à família é
atribuída a educação no âmbito privado, sendo particular à
escola favorecer as relações mantidas no espaço público.
Parece-nos que a transformação do espaço escolar não depende
da família e vice versa. É indispensável que a escola se
conscientize de suas funções buscando refletir frequentemente sobre
seus objetivos sem despender de tempo e energia buscando por
“culpados” pelas dificuldades encontradas em seu cotidiano
apenas extramuros.
Posteriormente,
faz-se necessário que a escola reflita: O que tem feito para
orientar os
familiares
a lidarem com os conflitos que informam por meio dos bilhetes ou nas
reuniões?
Não
estamos propondo que os pais não sejam avisados, muito menos que ao
receber as
informações
de seus filhos devem fazer tudo o que a escola solicitar.
Considerando que “muitas vezes a cooperação quer dizer
discussão e não acordo” (MENIN, 1996, p. 52), para que se
possa estabelecer uma parceria pautada na cooperação, é
preciso que essas duas instituições educativas dialoguem a
respeito de seu interesse comum: a educação de nossas crianças e
adolescentes.
Dessa
forma, acreditamos ser possível que a escola se torne um
ambiente mais acolhedor favorecendo relações mais amistosas e
respeitosas, ao invés de promover a ideia de que pais e
professores são adversários no processo educativo.
Todavia,
ao término deste estudo surgem outras indagações…
Poderíamos
supor que ao transferir os problemas para as famílias resolverem, a
escola se exime
de rever como trabalha com as regras e com os conflitos que surgem
naturalmente em seu espaço?
As
estratégias que os professores fazem uso, como os castigos, as
ameaças de enviar
bilhetes,
as censuras, não estariam contribuindo para o aumento dos mesmos
problemas que tentam resolver?
É só a família que deve fazer ajustes?
É só a família que deve fazer ajustes?
Será
que encontraríamos dados semelhantes em outras escolas da rede
pública? E nas
particulares?
Como
seria a comunicação com as famílias numa escola que ofereça um
ambiente sócio
moral cooperativo?Haveria diferença?
E
as regras convencionais cobradas dos alunos? Como surgem? Quais os
mecanismos de trabalho para sua legitimação no espaço escolar
antes de ser informado aos familiares que não estão sendo
cumpridas?
O
que fazer então?
Veja o vídeo onde a Dra Telma Vinha explica isto pessoalmente:
MEDIANDO CONFLITOS NA ESCOLA - TELMA VINHA
MEDIANDO CONFLITOS NA ESCOLA - TELMA VINHA
Referências
1
- CONSTRUINDO A AUTONOMIA MORAL NA ESCOLA: os conflitos interpessoais
e a aprendizagem dos valores (VINHA, TOGNETA, 2009)
2
- BILHETES REAIS E/OU VIRTUAIS: uma análise construtivista da
comunicação entre escola e família (SANDRA CRISTINA DE CARVALHO
DEDESCHI, 2011)
Série Telma Vinha - Sandra Tedeschi
- SE A CRIANÇA TEM CONHECIMENTO DO QUE É “CORRETO”, POR QUE NÃO O FAZ? - Série Telma Vinha, Sandra Tedeschi
- BILHETES DA ESCOLA – “Pais, Tomem providências!” - série Telma Vinha - Sandra Tedeschi
- A CONSTRUÇÃO DE REGRAS NA ESCOLA DO FUTURO - série Telma Vinha , Sandra Tedeschi
- QUANDO PAIS SÃO CHAMADOS NA ESCOLA – QUE DESASTRE! - série Telma Vinha, Sandra Tedeschi
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